Dúvidas apócrifas do suicida Padre Célio
Quando ainda no seminário, comentava-se da sua doença. Os superiores tomaram conhecimento, mas, mesmo assim, o ordenaram, numa espécie de grande esforço condolente, pois o jovem rapaz vindo de uma remota cidade do alto sertão, para ser padre, pedira que o ungissem sacerdote, queria “celebrar uma ou duas missas”. Assim foi feito, indo residir no Santuário de Santa Rita do Lima, integrante que era dos quadros da Sagrada Família.
Retornando de um encontro da sua congregação no Recife, passara em Campina Grande, e lá adquirira um revólver. Selava assim um pacto sombrio consigo mesmo ao se comportar como um homem e não como um padre. Forças obscuras conspiravam contra os paramentos sacerdotais. O homem sertanejo, com suas equações simples do existencial, ocupava o lugar daquele que tivera acesso ao requintado conhecimento dos seminários por onde passou. A vida, aliada ao destino, triunfava sobre o sagrado, o saber, a arte e a ciência.
Ele sabia muito bem da repercussão de um suicida em pleno Santuário de Na. Sra. dos Impossíveis, um dos maiores centros de peregrinação da região Nordeste, lugar no qual muitos foram depositar na sala dos milagres as preces atendidas. O seu gesto encheria de contradições a hierarquia da Igreja Católica. Desalojaria os santos dos altos nichos e altares. A mãe de Deus verteria lágrimas de sangue sobre o Menino-Jesus. Mostraria a fragilidade e pouquidade da fé, justo de um que exercitara o corpo e a alma para servir de exemplo. Padre Henrique Spitz, o construtor do que é hoje o Santuário gemeria sob a granítica pedra bruta do seu túmulo. Padre Antônio seria atirado às regiões pelágicas do seu ser, de onde jamais sairia, buscando, sem encontrar, uma garatuja de explicação para um ato tão distante da sua sólida e íntegra formação sacerdotal. E em frescas tardes, o velho sacerdote, já com o corpo recurvado pelo tempo, desceria lentamente a rampa que dá acesso à frondosa mangueira ao lado da Casa dos Padres, juntaria com um ancinho as folhas secas caídas da espessa copa verde-escura, arrastando pensativamente sua longa e indefectível batina de cor clara. Quando lhe perguntassem sobre a tragédia ocorrida, responderia pesaroso: “eu estou sofrendo muito”. Silenciaria resignado, respirando a perfumada brisa recendendo a mofumbo, advinda dos bosques que circundam o entorno do enclave religioso num dos contra-fortes da Serra de Patu.
“Sim, não vou negar que não sei tudo isso. Como poderei não pensar nas três irmãs religiosas pranteando lágrimas de vergonha e desassossego. Minha morte anunciada trará apenas minha paz, porque o mundo ficará em turbulência e carne viva após minha passagem. Não serei o cordeiro a ser imolado para redimir culpas coletivas. Serei a chaga viva da verdade do humano frágil, inquieto e sozinho no mundo, desesperado, sem ter com quem contar. Serei o irromper de verdades abissais que permanecem escondidas em abrigos bem construídos e cheios de fausto, engendrados que são nas ativas e astuciosas oficinas do medo. Serei a queda poeirenta do cabotinismo viciado do humano. Serei, sim, o desabrochar da hipocrisia de uma religião que teima em permanecer presa ao passado.
Não tenho mais vontade de sair da Casa dos Padres. Permaneço horas sentado sob o grande alpendre que me permite divisar o cimo do Santuário e os pés de coco selvagem sobre uma elevação do contraforte. Aqui do alto, apenas ouço o burburinho dos romeiros ao redor da igreja. Nada me apraz, senão os incontidos e compridos monólogos interiores, chafurdando no que desde sempre a herança do pretérito impôs: deixar quietas as comarcas mais profundas do ser. O Verbo abandonou sua esfera de perfeição e veio habitar em mim, trazendo-me sua espada de fogo para despoticamente me lançar nas sarças de luz e maldição. Ôh, Cristo triunfante, afasta-te de mim! De agora em diante só me interessa o Cristo do Getsêmane, porejando sangue e suor num desespero inominável.
Esquisito, eu, rapaz de origem pobre, fui ungido administrador de um dos lugares sagrados mais importantes da religiosidade popular, e mesmo assim impetrei minha autodestruição. O que havia nas minhas regiões mais interiores que ansiosamente desejou essa precoce aproximação da morte? O que tinha eu em mente ao procurar a senda do perigo, portadora de um tácito acordo entre as demandas do meu corpo e o que inconscientemente construi como impecilhos para me realizar como pessoa?
Quando aqui cheguei já trazia a doença. Eu, chaga viva, arrastando comigo pelas ruas o espelho do meu corpo. Passei quase desapercebido pelo povo do lugar. Como me afeiçoar a alguém ou a uma comunidade, se forças superiores a mim já tinham se apossado da minha alma impondo seu julgo de mando e terror. Com certeza muitos dirão da minha falta de personalidade, da minha presença insípida e fugaz: “era um homem magro”, lembrarão com indiferença mulheres ocupadas do lugar.
Ontem ao entardecer, esperei a desaparição do sol e sua luz, pois queria minha presença como um vulto e não com a obrigatória dignidade sacerdotal, exigida na presença dos fiéis, então fui rezar aos pés de Na. Sra. dos Impossíveis. A nave circular estava deserta. Ajoelhei-me no genuflexório. Fiquei em silêncio ante a infinita indiferença da mãe de Jesus. O silêncio era tamanho, e minha alma estava de tal maneira atormentada, que não consegui passar um minutos ajoelhado e em concentração, pois senti que eu não estava comigo, que abatera inconscientemente a mim mesmo, que já não podia contar nem com os restos do que eu fora. Eu fugira de mim, abandonara-me. Minha alma tornara-se uma planície de ermo e remorso. Uma imensa charneca povoada de urtigas e pedras. Todas as reservas interiores de sofrimento haviam se exaurido.
Meu Deus, o que foi que eu fiz para merecer isso? Diga-me. Piedade Senhor, para mim, que pensou no uso das máscaras como possibilidades subterrâneas de realização de uma frágil integridade interior. Eu que fiz uso dos rostos de santos e anjos numa vã tentativa de esconder o homem rude e simples que nunca deixei de ser. O homem de origem rural, limitado pelo meio do qual saí, incapaz de me reelaborar com os instrumentos requintados das classes superiores à minha. Até nisso fui incompetente. Na verdade, nunca subi na vida. Permaneci o rapaz agreste do sertão, com sotaque maneiras do interior.
Eis que começo a descobrir-me. Nunca pensei que isso fosse acontecer. Sei que tinha alguma consciência, algum lampejo que descarnava minha solidão e minha incompletude para com a opção de sacerdote. O pior aconteceu: minha memória resplandeceu límpida e impiedosa. Grande traição, imperdoável manobra de forças inconscientes do meu ser. Traí a mim mesmo. Bem que poderia ter lacrado as saídas das imagens para que não houvesse o meu reconhecimento. Não pude conter-me, visto que, frágil demais estava. Meus inimigos internos soaram as trombetas nas frestas entreabertas pelo permanente estado de tensão e sofrimento. Nada pude fazer contra mim, pois acumulei demais forças que me eram contrárias. Os muros caíram mais ligeiros que os de Jericó.
Quando chegar a hora do repouso, os tridentes da tortura arranharão meu corpo, pois sei muito bem que me encontrarei ao amanhecer, coberto com meu sudário de tristezas, intacto nos meus assombros de mim mesmo, desse corpo que se torna mais franzino e enclenque. Forma esquisita que me outorga através da sua presença a exata consciência do meu fenecimento e da proximidade da morte..
Todos os dias reparo na minha pele as marcas do relógio. Nódoas púrpuras repontam nos meus braços, minha pele fica baça, meus músculos laços de tanta fadiga, nódulos no pescoço. Minhas carnes desaparecem. Sinto que meu corpo não mais me obedece em nada, evolando sua substância e sua força.
Será possível que eu vou ficar restrito à minha alma? Quantos homens serão preciso para conduzir o meu caixão?
Quando amanhã, consumar minha via crucis, dolorosa e cansativa, serei sepultado na pequena cidade em que nasci, expondo a todos os meus parentes, amigos e vizinhos a suprema humilhação de alguém que se achegara a Deus, sem contudo saber como conviver com Ele; a diferença é que não terei direito à ressurreição. E se assim o é, nada posso dizer, senão “Amém”.
Márcio de Lima Dantas é professor de Literatura Portuguesa da UFRN, ensaísta e tradutor.
mdantas7@bol.com.br
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